Opinião | A vitória é da democracia

Mesmo fraturada, a sociedade brasileira depositou 60 milhões de votos em Lula e demonstrou que não quer retroceder ao autoritarismo.

31 de outubro de 2022
atualizada em
Lula e Alckimin celebram a vitória no pleito de domingo com a bandeira do Brasil. Foto: Divulgação/Ricardo Stuckert
Lula e Alckimin celebram a vitória no pleito de domingo com a bandeira do Brasil. Foto: Divulgação/Ricardo Stuckert

Ameaçada, a democracia brasileira deu sinal de força neste domingo (30) histórico. A vitória da chapa Lula (PT)/Alckimin (PSB), que conseguiu reunir ampla coalização de forças políticas, traz esperança de pacificação do país.

O discurso do presidente eleito foi muito além da bolha de sua militância histórica e demonstra disposição para buscar uma gestão de conciliação. Postura que inevitavelmente faz lembrar a convergência que o movimento Diretas Já produziu na década de 1980, ajudando a preparar o terreno para o fim da Ditadura Militar e o retorno ao regime democrático. .

Apesar de apertada, a derrota de Bolsonaro (PL) tem peso simbólico enorme. Foi a primeira vez, desde o retorno das eleições diretas para presidente, que o atual ocupante do Planalto não se reelege, mesmo usando e abusando da máquina pública. E também ajuda a frear o extremismo libertado por Bolsonaro, que insistiu em jogar gasolina na fogueira do ódio que consome a sociedade brasileira. Sem contar que Lula bateu recorde numa disputa a presidente do Brasil, com mais de 60 milhões de votos.

Este terceiro governo do petista deverá enfrentar muita dificuldade. A economia ainda sofre com os efeitos da pandemia e da guerra na Ucrânia. Na parte política, vai precisar reverter o mecanismo que criou o retrocesso do orçamento secreto. Vai ter que equacionar as tensões com o STF. Desintoxicar a parte das Forças Armadas e das polícias contaminadas pelo viés golpista de Bolsonaro.

Tem a fome e a extrema pobreza, que voltaram com força. O Brasil precisa voltar a trabalhar para reduzir a desigualdade social. Nisso Lula é craque, mas o sucesso nessa frente dependerá do sucesso da articulação política. Isso num cenário em que a direita liberal perdeu espaço para a extrema direita, hoje muito representativa no Congresso Nacional, demais casas legislativas e também entre governadores e prefeitos. E tem o onipresente Centrão.

Protagonismo na frente ambiental

Outra frente urgente é a ambiental. As mudanças climáticas se aprofundam, com efeitos devastadores nas esferas econômica e social. O novo governo precisa fechar a porteira da boiada, do gado à soja. Que a promessa de desmatamento zero na Amazônia se cumpra. E se estenda aos demais biomas, como a mata Atlântica capixaba e teresense, que voltou a ser criminosamente destruída nos últimos anos.

O mesmo vale para a esculhambação da mineração, do garimpo. Inclusive em terras indígenas. Lula tem tudo para reconduzir o Brasil ao protagonismo da agenda ambiental. E rumar para economia verde. Apoio externo não faltará.

Foi alvissareira a fala de Lula sobre rever a matriz econômica do Brasil, que quase que restritas às commodities. O presidente eleito promete reindustrializar o país. Na agricultura, força brasileira, deve buscar fortalecer os pequenos produtores. São eles que produzem 70% da comida que chega à mesa. A agricultura de Santa Teresa, por exemplo, é praticamente toda de pequenas propriedades familiares.

Segurança, educação, cultura e saúde

Os desafios se seguem na segurança pública, cultura e educação. A primeira não melhorou como o prometido por Bolsonaro e, pior, trouxe a preocupante disseminação de armas entre a população civil. As duas últimas retrocederam e precisam ser resgatadas porque terão efeito positivo sobre a primeira.

Em relação a saúde, uma coisa é fato: a desastrosa condução de Bolsonaro na pandemia e o criminoso movimento antivacina propalado por ele é um dos motivos de sua derrota. Cabe ao novo governo fortalecer o SUS, que já é bom na atenção primária e na urgência/emergência, mas que precisa avançar no antendimento especializado. E odontológico. É preciso ainda criar planos para prevenção e mitigação de novas pandemias.

Transparência, direitos humanos e diversidade

Xingamentos, falas misógenas, homofóbicas, racistas e até insinuações pedófilas (“pintou um clima”, lembram?) foram proferidas pelo homem que ocupa o mais alto cargo da República. É também papel do novo presidente ressignificar a função, resgatando o patamar de liderança civilizatória que é inerente a ela.

A imprensa precisa ser respeitada. A diversidade étnica, religiosa, sexual, também. Minorias têm de ser protegidas. São pilares de nossa Constituição. Assim como o respeito à liberdade de culto, por isso o Estado não pode se vincular à idelogias de segmentos religiosos. É preciso ensinar aos intolerantes que a diversidade é o destino da humanidade. O contrário é autoritarismo que atenta contra a liberdade, causando sofrimento a oprimidos e opressores.

Todos os atos administrativos que envolvam o dinheiro público têm de estar abertos. Não faz sentido sigilo, senão esconder malfeitos. Que os sigilos de 100 anos inventados por Bolsonaro sejam quebrados. E que a população possa ser protagonista na hora de definir aonde deve ser aplicado o dinheito público.

Eleições e fake news

Mesmo com a PRF fazendo – a mando do Planalto - injustificadas operações nas estradas para atrapalhar o trânsito de eleitores, mesmo com ameaças de violência e atos tresloucados como o da deputada bolsonarista Carla Zambelli (PL –SP) no sábado (30), a votação transcorreu bem.

Em menos de três horas após o fechamento das urnas o país já sabia quem eram os governadores e o presidente eleito. Não há dúvidas da solidez do processo eleitoral brasileiro. Se tem imperfeições, nosso modelo eleitoral precisa ser ajustado por dentro. E não solapado por aventuras autocráticas. É evidente a má intenção de Bolsonaro para contra a democracia brasileira, tanto que até a manhã desta segunda-feira (31) ele não havia se manifestado sobre o resultado do pleito.

Não é de hoje que existem notícias falsas e distorcidas plantadas para destruir reputações e induzir comportamentos. Mas com as internet e as redes sociais isso ganhou velocidade e capilaridade assombrosas.

Hora de sair o gabinete do ódio e entrar a esperança

Se em 2018 o gabinete do ódio rezou a cartilha de Steve Bannon (Guru digital de Donald Trump, do Brexit e de outros movimentos de extrema direita no mundo Ocidental), nos anos seguintes ele aperfeiçoou a prática. E buscou nos recôndidos do Brasil profundo, conservador, escravocrata e preconceituoso, o combustível do medo e do rancor para inflar o ódio contra qualquer instituição ou pessoa que pense diferente.  

O novo governo, junto às outras instituições da república e à sociedade civil, precisa trabalhar para combater isso. É imperativo à tão desejada pacificação do país. O desafio é imenso, como nunca se viu desde a redemocratização. Que tenha sucesso, pelo bem do Brasil e da humanidade.

imagem de
Bruno Lyra
Jornalista especializado em coberturas ambientais e professor de geografia
PublicidadePublicidade